Fernanda é uma mulher transexual da zona sudoeste de São Paulo.

“Ser transexual é ter que conquistar cada dia um ambiente diferente, uma pessoa diferente. Porque a gente vive em um pais extremamente preconceituoso, um pais cheio de mitos ao redor do que é ser travesti e transexual. Ser transexual é conviver com esses mitos, é se entender e entender o mundo que te rejeita”

Fernanda Bourbon

Nascida no ano de 1987, com 8 meses de gestação e quase desfalecida, Fernanda Bourbon que
aos 22 anos se reconheceu como transexual, conta sobre sua vida de recomeços. Filha de
Angela e irmã de três homens, ela diz que desde que se entende por gente, se entende
mulher. Mesmo tendo nascido no corpo de um homem nunca pensou diferente ou fora do
universo feminino.

Sua infância (Fernanda antes da transição)

Ainda pequena sua mãe já reconhecia em si características diferentes dos outros irmãos,
desde a forma como agia com as pessoas, até o jeito de se projetar.

“Quando minha mãe teve essa percepção diferente sobre mim, foi muito importante pois
durante minha infância eu podia agir como queria, ter mais amizade com meninas, brincar as
brincadeiras que eram tidas como de meninas, eu gostava de brincar de casinha, fazia
companhia para minha mãe, eu era fã da Xuxa, queria ser uma das paquitas…”

Fernanda era uma criança vivendo na geração onde realmente azul era cor de menino e rosa,
de menina, e a heteronormatividade estabelecia tudo que os homens deveriam fazer e como
as mulheres deveriam se portar, em sua maioria das vezes, em prol dos homens.

Para compreendermos o começo dessa história, é necessário entender que característica de
gênero é diferente de orientação sexual. O primeiro, é com qual sexo (biológico) você se
identifica e o segundo, que tipo de ser humano você se sente atraído. Fernanda sempre foi
reconhecida como um menino afeminado em sua infância. Porém, conforme ela foi
amadurecendo, tudo começou a ficar mais complicado pois a orientação sexual dela a
confundia. Na escola, na época das “Paixonites platônicas”, Fernanda se interessava por
homens e nada disso fluiu tão tranquilamente.

“Ok! Eu ainda não havia me reconhecido mulher, mas sabia que gostava de homens, e isso foi
extremamente confuso pra mim. Na minha época o preconceito era muito grande, o bullying
não tinha nome ainda, e eu sofria agressões na escola, na rua, entre as crianças, na minha
família. Porque apesar da minha mãe buscar me entender como diferente e me criar com todo
cuidado, ela dizia que não havia nenhum gay na família, nenhuma pessoa diferente e eu existia
sim!”

Sua adolescência

Em sua adolescência a confusão era tanta que praticamente dormia com Fernanda. Ela
conhecia os homens que gostavam de mulheres, e mulheres que gostavam de homens. E
também sabia que existiam homens gays, e mulheres lésbicas. Mas Fernanda não se
enquadrava em nenhuma desses estilos de vida.

“Eu me entendia menina, uma menina no corpo de um menino, que além de tudo gostava de
meninos. A palavra ‘transexual’ só foi abordada didaticamente anos depois de minha busca
por completude. Pra mim, só existia hétero e homossexual e eu não era nenhum dos dois. Eu
me sentia uma mulher que gostava de homem num corpo masculino”.

A adolescência por si só já é uma fase complicadoa para todos, os hormônios explodindo e o
desejo sexual vindo junto com essa explosão interna. Imagine somar tudo isso Somando isso
com a questão da masturbação, do entendimento do corpo físico atrelado ao corpo
psicológico,. Foi aí que Fernanda entra em pane.

“Eu tinha um pênis a minha natureza fazia eu entender esse pênis, só que para ter prazer eu
precisava pensar em homem e me tocar. Mas isso era ultrajante! Tocar em um órgão que eu
não reconhecia como meu era pisar num solo que eu não conhecia, pisar em um solo que eu
não queria conhecer. Era horrível ter que tocar num órgão que eu não queria ter para chegar
no prazer.”

Conforme o tempo vai passando, as pessoas vão amadurecendo e a característica de gênero
fica mais visível. Fernanda já era afeminada e sua família julgava muito essa natureza,
principalmente por conta da religião, já que boa parte da sua família era evangélica.
“Para eles, eu era satânica, iria para o inferno e apesar da minha mãe ter sido umbandista e ter
convivido muito em um ambiente gay, naquela época era assim que se viam as pessoas
diferentes, sem contar que ela não entendia a situação que eu estava, nem eu mesma me
entendia. Mas eu sabia que a saída não era ir pro inferno…”

Nesse período, Fernanda começou a frequentar a psicóloga da escola, a Dona Vera, que de
acordo com ela, a fez começar a entender algumas coisas, e ao mesmo tempo desentender
outras. Para ela, a postura da especialista não foi a ideal.

“Ela propôs que eu conhecesse mais o universo masculino, propôs até que eu empinasse pipa
com o filho dela, o que eu particularmente, achei o ó, porque eu tinha irmãos, eles viviam
nesse universo, eu presenciei esse mundo. Ela achar que me tornaria mais masculino dessa
forma, não fazia muito sentido, não tinha nada a ver comigo. ”

Fernanda conta que para ela, viver em meio a tanto julgamento era enlouquecedor. Isso
começa a suavizar um pouco quando ela conhece Paulinho, rapaz responsável por apresenta-la
ao mundo gay. Foi aí que a confusão se afastou e o pensamento de completude tomou conta.
Depois disso, ela viveu um processo intenso de reconhecimento e entendimento.
“(…) cComecei a acreditar que um dia eu ia conseguir sair vestida de mulher, vestida daquilo
que eu sentia que era realmente. Aos 18 anos eu me assumi gay, porque era o que tinha de
mais próximo a mim. A primeira coisa que minha mãe falou foi ‘eu entendo que você é
diferente, mas pelo amor de Deus, não me inventa de colocar uma saia’, sendo que dentro de
mim tinha uma mulher desesperada gritando para colocar a saia”, afirma.

Sua fase adulta (Fernanda após a transição)

Fernanda duelava consigo mesma por dentro, até que aos 22 anos, durante um programa da
televisão, ela conhece o CRT (Centro de Tratamento para Travestis e Transexuais de São Paulo)
e lá entende o que era ser transexual.

“Eu soube onde me encaixava, entendi que eu não era gay, não era uma mulher cis, eu era
uma mulher transexual. No CRT fiz acompanhamento por nove anos, com psicólogo, com
clínico geral, e psiquiatra, só três anos atrás tomei a decisão de realizar a ginoplastia”

Esse acompanhamento consiste na busca pelo seu entendimento, se compreender antes de
qualquer decisão cirúrgica. Durante esses nove anos de acompanhamento, Fernanda tomou
hormônios, começou a sair na rua vestida de mulher, se reconheceu, se entendeu, viveu cada
fase e se entendeu cada vez mais como mulher. As coisas foram se encaixando em sua cabeça,
a confusão cessou e ela viu que a era esse o recomeço que precisava. Decidiu fazer a cirurgia.
“Em abril coloquei minhas próteses e como a ginoplastia pede um pós operatório totalmente
em repouso, eu ainda não tinha dinheiro suficiente para parar de trabalhar. Consegui realizar
minha cirurgia apenas no dia 9 de outubro e enfim, renascer! E hoje eu estou assim, ainda não
vivi a parte bacana da cirurgia, porque o pós é muito dolorido.”

A cirurgia de Fernanda começou às sete horas da manhã e acabou duas horas da tarde, depois
disso, foram mais sete dias internada tomando remédios e recebendo morfina na veia, sem
contar os três dias com dreno e os oito dias com sonda para urinar.

“A cirurgia é absurdamente complexa, dolorosa, nos primeiros dias que eu fui pra casa sofri
muito, quase não levantei da cama, senti muita fraqueza, perdi 6kg pois perdi muito sangue
durante a operação. Esses anos de tratamento foram importantes pois essa cirurgia não tem
volta”

Fernanda está passando por um processo de dilatação do novo órgão, onde em que são
necessários moldes internos para dar elasticidade e profundidade ao membro. Pois a ideia da
cirurgia a princípio é a retirada do pênis, mas também o entendimento do que é ter e viver
com uma vagina.

“Acho importante mostrar essa realidade, porque para muita gente, é só ir lá, operar e voltar
para casa com uma vagina, mas não é assim. O pós-operatório é muito complicado, você fica
com o molde 24h por dia para não fechar o canal, depois tem que dilatar esse canal, para
conseguir ter relações sexuais. Sem contar que por terem que refazer o canal urinário, ele arde
muito, eu ainda estou me adaptando a esse novo órgão, entendendo ele, sentindo ele, fazer
ele caber no meu corpo”

Durante esse processo de se encontrar, Fernanda se afastou muito de sua família e só voltou a
falar com a mãe quando ganhou uma sobrinha e passou a cuidar dela. O Brasil continua em
primeiro lugar no ranking de assassinatos a transexuais, e hoje esse é um dos maiores medos
da mãe de Fernanda.

“O preconceito é muito grande, viver isso é muito delicado, você sofre preconceito na rua,
sofre dentro de casa, em todo e qualquer ambientes. Eu graças a Deus pude trabalhar numa
outra área que não seja a prostituição, apesar de ter conhecido essa vida e visto que não era
para mim. Hoje eu tenho minha casa, sou cabelereira a doze anos e tenho meu próprio salão.

Conquistei o apoio dos meus familiares, se alguém me chamar por outro nome, eles me
defendem, hoje eu sou a Fernanda”, conta, com orgulho.